A pensar no Brasil
E na extrema direita contra o Paraíso
“Com efeito, pergunta à geração precedente e está atento à experiência dos seus antepassados, pois nós somos de ontem e não sabemos, pois os nossos dias sobre a terra são uma sombra, não são eles que te instruirão, que te falarão e que, do seu coração, extrairão palavras?”
Job, VIII, 8.
Escrevo isto a olhar para os resultados eleitorais no Brasil, onde um pequeno Hitler de opereta consegue liderar resultados e chegar à frente dos resultados antes da segunda volta que, para horror do que resta de positivo no mundo, podem ainda oferecer-lhe o poder, se o povo tiver ensandecido de vez e assinar, gratuitamente, a sua sentença de má sorte e morte.
No dia 28 o Brasil pode ainda mostrar que tem dignidade – ou atribuir à História mais uma das muitas páginas sangrentas que ela tanto aprecia.
Tal como na América recente, ou como na Alemanha dos anos 30, a tragédia repete-se em eleições de voto à vista, que guia a mão dos desesperados (talvez pensem que, ao serem decepados, podem continuar a acenar).
Depois da vergonha com Temer, do que se passou com Dilma e da encenação da culpabilidade de Lula (vitórias bem urdidas da direita que cada vez anda mais sofisticada em montagens cénicas), a ignomínia tem o nome de um candidato que era fraca figura parlamentar e que as circunstâncias atiram para a ribalta (com o pequeno acréscimo de toque dramático de um arranhão que quase o transformou em mártir). Facada profunda se vencer.
Mais grave do que o candidato ser assumidamente homofóbico, racista, misógino, pró-ditadura, um fascistazinho de grandes ambições, é saber que há milhões como ele, ou que pelo menos o legitimam, como os evangélicos marginais que a polícia parece ignorar sendo muitos deles fora da lei à solta, gabando-se da sua impunidade, os fundamentalistas em geral, os assassinos, os pistoleiros de calçadão, os que odeiam as favelas mas que tanto precisam delas, os saudosos da ditadura e do passado cruel que quase acabou com o País.
O Brasil parece ter – e querer – o seu Nicolás Maduro de extrema direita. Pobres irmãos de tão triste sina.
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Nunca acreditei em fronteiras disciplinares e creio que as respostas aos imensos equívocos e demais dúvidas do quotidiano podem vir de qualquer disciplina de reflexão – seja ela a matemática ou a física quântica, a antropologia, os estudos culturais, a ciência das religiões, a história ou mesmo a literatura. Porque as respostas, mais do que radicarem nas disciplinas, radicam no seu âmago, nas ideias que as suportam, ou pelo menos no último reduto das ideias que persistem. Mas para haver ideias é necessária a formação de seres humanos que as produzam.
É a capacidade de produzir ideias que nos distinguia comummente na escala das evoluções. Só que ao definharmos – ao voltarmos aos pequenos redutos da violência e da submissão – andamos a retroceder, para pior, na nossa condição animal. A nova relação de escalas aponta-nos o caminho da superficialidade. Não queremos pensar, agimos por instinto (basicamente, de forma irracional) e confundimos o sentir. Conhecemos de nós a nossa crosta, numa espécie de conversa que travamos connosco: ao espelho, tentando confirmar se a ruga está camuflada, o ponto negro encoberto, a maquilhagem no sítio, de modo a levar à rua o que não somos.
Se olharmos para o mundo ocidental de hoje, tomamo-lo exatamente pela sua crosta: é uma película aparentemente dura, vã, que esconde muitas cicatrizes. Já encontramos poucas ideias – e as gerações que aí vem, sobre as quais irão cair todas as responsabilidades, são gerações de polegares grandes, desses capazes de fazer como no coliseu romano o sinal do castigo e da salvação, desses capazes de recorrer ao Short Message Service onde ingenuamente pensa estar resguardadas as emoções e a comunicação. É este triunfo da crosta que permite os populismos, os radicalismos, o suicídio de pessoas e países. Veja-se o caso de Trump e desse pequeno e perigoso Hitler que aparece agora nas eleições brasileiras, perante um povo confundido que julga ir resolver a sua vida se tiver armas na mão, se atacar mulheres, minorias, cores de pele ou opções sexuais, em nome da Ordem e do Progresso que já no passado tantos vitimaram, pelos vistos sem produzir leituras didáticas suficientes. O mundo é esta nova crosta. É ele próprio um recurso do Short Message Service. Na selfie ficará uma civilização condenada, que balbuciará na extrema unção o seu arrependimento. Ou nem isso, pois não terá ideias para tanto.
Alexandre Honrado
Historiador